Experiências de vida adulta no transtorno do espectro autista

Ao longo da vida adulta, sendo uma pessoa autista inserida no sistema de saúde atuando como analista de inovação clínica, não podia deixar de me divertir com situações atípicas que ocorriam no meu trabalho e que de alguma forma eu me identificava. Uma parte do meu trabalho era realizar testes em sistemas de prontuário eletrônico, e, para isso, foi desenvolvido um buscador de códigos de CID e CIAP, que ficaria registrado no prontuário do atendimento de urgência na telemedicina.

O CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde) é um código bastante conhecido por todos que já receberam um diagnóstico médico, mas o CIAP (Classificação Internacional de Atenção Primária) também existe!, e é um código complementar geralmente preenchido pelo enfermeiro no exercício da triagem, e leva em consideração às questões relacionadas às pessoas e não às doenças.

Para testar a ferramenta desenvolvida eu precisava buscar, de forma aleatória, um código de CIAP e de CID para cada teste de registro de prontuário. Em determinado momento, eu digitei “P25” no CIAP e apareceu, com sucesso: “problemas da fase de vida de adulto”. E ao colocar o CID para finalizar o teste do buscador a piada já estava pronta, eu não poderia deixar de me identificar mais…

CID 10: Z600 – “Problemas de adaptação às transições do ciclo de vida”

Eu estava vivendo um dos meus momentos de maior fragilidade, provocado pelas adaptações que a pandemia exigiu nos principais pilares da minha vida.

Eu sempre achei que tinha algo de errado comigo antes do diagnóstico de autismo. Não me lembro de passar por algum processo de adaptação relacionado às transições do ciclo de vida que foi típico. Desde que entrei no mercado de trabalho, há 13 anos, sinto que nunca me adaptei a essa dinâmica. Da mesma forma, sinto que nunca tinha me adaptado realmente às dinâmicas de vida de um estudante. Minhas relações afetivas e sexuais sempre foram atípicas. Nunca me adaptei aos processos comuns de um mundo que tende a ser normativo. Era estranho pensar ser criança, é estranho pensar ser adulto. Observar o meu envelhecimento e os marcos de vida é estranho. Minha perspectiva é autista.

E, como qualquer adulto que foi diagnosticado tardiamente, precisei compreender alguns dados para começar a conhecer a população da qual eu fazia parte, mas somente aos 31 anos tive a oportunidade de me incluir.

Dados contemporâneos sobre adultos no espectro autista

  • A inserção no mercado de trabalho é fundamental para a conquista da independência. Os dados ainda são escassos, mas estima-se que, no Brasil somente 15% das pessoas autistas estão inseridas no mercado de trabalho de acordo com o IBGE;
  • No ambiente acadêmico os autistas também enfrentam dificuldades de inclusão. Um estudo da Universidade de Brasília em 2021, apresenta somente 2% da população com algum tipo de deficiência, que incluem 0,4% pessoas dentro do espectro nas universidades da região. Outros estudos realizados por universidades do sudeste, norte e centro-oeste, tem uma variação estimada de 0,3% a 0,9% da população autista no ambiente acadêmico;
  • Adultos autistas são mais vitimizados ao longo da vida. O índice relacionado ao transtorno de estresse pós traumático (TEPT) na população autista é de até 15 vezes maior do que uma pessoa fora do espectro (ocorrência de aproximadamente 4% na população geral e entre 40% a 60% na população dentro do espectro;
  • Aproximadamente 30% das pessoas autistas apresentam deficiência intelectual associado ao transtorno, exigindo suporte substancial ao longo de toda a vida;
  • No Brasil, o censo do IBGE também aponta que aproximadamente 60% das pessoas diagnosticadas com o autismo possuem entre 5 e 17 anos, 30% entre 18 e 50 anos, indicando que o acesso ao diagnóstico se torna mais difícil na vida adulta.

Dado as características específicas do espectro autista, a falta de dados mais detalhados sobre a qualidade de vida dessas pessoas durante a vida adulta influencia diretamente na expectativa de vida da população que está no espectro.

Fonte: A inclusão do estudante autista adulto nas faculdades e universidades brasileiras

Processos adaptativos na vida adulta no ponto de vista autista

Para abordar este tema, preciso deixar evidente que, quando me refiro a “momentos de vida adulta”, não necessariamente são eventos e experiências que ocorrem apenas após atingir a maioridade. Momentos de vida adulta podem ser, por exemplo, responsabilidades projetadas em crianças, como a de um filho primogênito pelo cuidado do mais novo.

Todos os autistas possuem alguma história para contar sobre um momento desejado (ou não) que foi alcançado, mas as reações ou processos adaptativos não foram como esperados. Pessoas autistas, ao vivenciar a necessidade de adaptação para um novo momento de vida adulta, podem acabar lidando com a dificuldade do processamento emocional e a adaptação às novas rotinas que aquele momento entrega.

Não deve ser difícil imaginar alguma dificuldade ou comportamento atípico ao lidar com as dinâmicas de um emprego novo. Ou de precisar mudar de cidade e recomeçar uma vida em um local desconhecido. A imprevisibilidade geralmente é uma grande inimiga da pessoa autista, mas é condição intrínseca da vida adulta da maioria das pessoas que vivem o transtorno, mas precisaram se adequar a um universo feito para neurotípicos.

“A alternativa sintática que encontraram para a reflexão sobre o trabalho, propondo-se então do ’mercado ao mundo’, continua ainda, obsoleta. Parecem-me palavras soltas que não compõem um significado mais profundo para pessoas neurodivergentes. Na superfície, ‘mercado e mundo’ são partes de uma sociedade que não inclui e não valoriza as diferenças. Nossos corpos devem continuar sendo produtivos, a qualquer custo, em um mundo sempre pensado para pessoas típicas. Na profundidade, adoecimento, assédio moral e impermanência no trabalho. Na minha singularidade semântica, é como se me jogassem ao oceano, em qualquer parte do mundo, sem saber nadar.” – Aline Korndörfer

“Sempre fui tratada como imatura, influenciável e infantil, por gostar de desenhos animados, figurinhas, bichos de pelúcia e imitar as pessoas, sotaques e jeitos. Pra mim, ser ‘adulto’ sempre foi tentar reprimir tudo isso e parecer séria e ‘profissional’. Nos primeiros anos de faculdade eu bebia muito. Quando comecei a namorar com o meu primeiro marido (que era professor lá), cansei de ouvir que eu precisava parar de beber pra ser respeitada, que precisava mudar minha vestimenta e comportamento, porque eu era namorada/esposa de professor. Tinha que usar saia, sapatinho e roupa de ‘mulher adulta’. Nessa época tive vários problemas (sem detalhes pra não gerar gatilhos) e só comecei a perceber que estava em um relacionamento abusivo depois de começar a terapia. Quando me divorciei, aos 24 anos, minha mãe queria que eu voltasse pra casa (eu tinha crises de pânico e não conseguia ficar sozinha), mas meu pai disse: “Você precisa aprender a ser independente” e me apoiou. Eu tinha a companhia da tv, que ficava ligada direto. Na mesma época encontrei um grupo de amigos, que são meus amigos ‘pra toda hora’ até hoje. Eles sempre iam à minha casa ou me tiravam de lá, e eu quase nunca ficava sozinha. Nesse grupo de amigos também encontrei um amor de verdade, que me apoia, me dá suporte e me ama do jeito que eu sou. Estamos juntos há 24 anos.” – Tatiana Ferrari DAddio

“Ser adulto sempre foi tentar reprimir essa ‘infantilidade’, ser séria, profissional, saber lidar com as situações, saber o que dizer, ‘conseguir’ trabalhar e se bancar. Sempre levei para terapia o que é ser adulto, o quão difícil era pra mim me ‘encaixar’ nisso, o quão difícil e assustadora me parecia (e muitas vezes é) a vida adulta.” – Bia Cugnasca

“Eu fui uma criança muito responsável, então sempre pensei muito no meu futuro, e sempre consegui me forçar a dar passos difíceis pra me tornar mais independente. Mas acho que a parte mais complicada da transição pra vida adulta pra mim foram e ainda são as interações sociais e relacionamentos. Nos relacionamentos com amigos e família, eu acabo passando longos períodos sumido porque não sinto saudades, esqueço datas importantes e esqueço de “dar manutenção” nas amizades; Por conta disso, toda vez que saio de algum ambiente de convívio, como o trabalho, eu perco praticamente todas as amizades que eu fiz. Acho que a outra pessoa se sente “abandonada”, mas pra mim é difícil lembrar de manter essa amizade.” – Anônimo

Quando somos autistas e sequer temos acesso a essa informação, só conseguimos nos comunicar para a sociedade aquilo que ela é capaz de enxergar, tornando os processos considerados naturais de adaptação um desafio solitário para quem não teve a oportunidade de conhecer os seus pares e saber como lidar com as dificuldades individuais e singulares relacionadas ao transtorno do espectro autista.

Texto desenvolvido por Pedro Anacleto para o exercício dos encontros atípicos.

Resposta

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