Relato por Pedro Anacleto, autor do blog
Não… eu nunca quis ser autista. Quando eu era criança, todas as vezes que eu ia para a escola eu sentia uma estranha sensação que eu precisava me aclimatar àquele ambiente e aquilo demorava mais do que o comum. Minhas dificuldades em iniciar interações sempre me faziam ficar sozinho nos grupos. Eu nunca compreendia muito bem a intenção das pessoas comigo, portanto, minhas amizades não duravam mais do que alguns dias em que conseguíamos compartilhar algum interesse. No final das contas, eu sabia que eu era estranho e parecia ser o patinho feio no ambiente escolar.
Eu não sentia dor como as outras crianças, portanto, me batiam, torciam e beliscavam como se eu fosse um espetáculo. Já fui incentivado a me cortar – até mesmo com a presença de professor em sala de aula sem intervenção nenhuma sobre aquilo – e na maior parte do tempo eu só era uma criatura estranha, silenciosa e suportável, que não dava trabalho para ninguém (em situações sociais geralmente meu comportamento é hiporreativo e não verbal).
Eu queria ser como meus colegas, que pareciam ter uma popularidade gratuita que eu não conseguia compreender.
“Déficits para desenvolver, manter e compreender relacionamentos, variando, por exemplo, de dificuldade em ajustar o comportamento para se adequar a contextos sociais diversos a dificuldade em compartilhar brincadeiras imaginativas ou fazer amigos, a ausência de interesse por pares.”
Na medida em que eu crescia eu ia percebendo que a minha dificuldade de iniciar e manter relacionamentos era algo intrínseco à mim, a sensação da solidão seria constante justamente porque eu fazia muito esforço para realizar a manutenção social com as pessoas que eu me interessava. O esforço, por vezes, ainda é tão grande, que a evitação se torna a saída mais segura, mesmo que totalmente contra os meus interesses.
Meus primeiros contatos e identificação com o autismo e comportamentos sintomáticos
Eu assisti ao filme Rain Man (1988) pela primeira vez quando minha professora de ciências exibiu para a minha turma de sexta série em 2003. Eu me identifiquei com o personagem do Raymond e pensei, naquele momento, se eu teria alguma chance de ser como aquele personagem quando eu crescesse. Eu não tinha nenhum diagnóstico e imaginava que o autismo era algo que necessariamente colocaria a pessoa em um hospital psiquiátrico, como era o caso daquela representação do autismo no filme.
Aproximadamente neste mesmo período durante uma visita à uma tia que mora no interior, ela me perguntou o por quê eu não chamava os meus amigos da cidade para brincarmos, e eu respondi que eu simplesmente não sabia como fazer aquilo. Ela me perguntou se eu não tinha medo de ficar sozinho, e eu respondi que talvez eu seja realmente o tipo de pessoa que fica sozinha, que se sente só mesmo quando está acompanhado.
A verdade é que eu queria encontrar meus amigos quando eu ia até a cidade, lembro até hoje dos nomes deles e o quanto eu me divertia quando brincávamos na pracinha ou jogávamos vídeo games, mas eu também me acostumei a ficar muito confortável com a ideia de não encontrá-los, pois era realmente difícil para mim tomar a inciativa de bater à porta da casa deles e fazer a manutenção daquelas amizades. Quando eu calculava o esforço para iniciar aquelas relações ao bem-estar que eu sentia por ficar em casa jogando videogames sozinho, não havia dúvidas que eu optaria por continuar em casa. O que não quer dizer que eu não sentia falta daquelas interações.
Me identifiquei novamente com um personagem autista com o filme australiano Mary e Max, de 2009. A representação do autismo naquele filme mais uma vez me colocou para me comparar àquele personagem com o comportamento que eu considerava normal para as pessoas da minha idade, e, mais uma vez, me identifiquei com o comportamento do personagem autista.
Eu sempre quis viver dentro de um padrão neurotípico, como as outras crianças, adolescentes e adultos da minha idade. Mas é impossível viver este padrão quando você tem dificuldades para iniciar e, principalmente, manter as interações sociais; quando está sozinho ou sobrecarregado o suficiente apresentando padrões repetitivos de comportamentos que muitas vezes são auto-lesivos (skinpicking, onicofagia, tricotilomania) e outras estereotipias motoras, como movimento de pêndulos, batucadas e pernas inquietas ou em ritmo com alguma música ou som que fica repetindo incessantemente na minha cabeça.
As sensibilidades sensoriais na maior parte do tempo parecem adequadas para os outros, entretanto nas situações sociais (e em alguns casos nas relações afetivas), o simples toque leve ou a dificuldade de manter um olhar constante desencadeia uma dor ou incômodo em mim que podem gritar para o meu cérebro reagir e evitar o estímulo. Minha reação pode ser completamente diferente ao lidar com outros estímulos mais intensos, como aparente indiferença às dores consideradas intensas pelos outros.
Eu sofro ainda com o atraso no processamento emocional e dificuldade de nomear as minhas emoções (alexitimia), o que torna a minha comunicação sobre as minhas emoções muitas vezes confusas e ineficiente em diversos contextos, me causando prejuízos principalmente no compartilhamento de interesses e na minha dificuldade de comunicação sobre sobre as minhas necessidades de cuidados quando preciso de um médico ou cuidado terapêutico.
Mesmo se aproximando de dois anos do meu diagnóstico, ainda é difícil aceitar que não vou conseguir experienciar a vida da forma como eu tanto desejava, entretanto sou grato por ter a chance de começar um cuidado adequado para conseguir viver melhor.
Tenho aprendido a lidar com as minhas frustrações e gerenciar melhor as crises após o diagnóstico tardio de Autismo
Um dos principais efeitos terapêuticos do diagnóstico para mim, está sendo compreender que as crises são uma constante, e por isso, compreender bem os meus limites para estímulos sensoriais e sociais. O autogerenciamento das crises também muda com o autoconhecimento sobre as características diagnósticas do autismo.
Para cada crise que eu tenho, eu penso “tudo bem, deixa estar, quando ela ir eu não vou sentir falta.” Parece até que eu finalmente consigo descansar quando isso acontece. Com o diagnóstico tardio de autismo eu posso me permitir não gostar de como o transtorno me faz experienciar a vida. Saber que sempre será assim torna as coisas mais confortáveis. Eu gastava energia demais tentando ser diferente, e agora eu posso direcionar essa energia para o meu cuidado.
Talvez eu nunca me adapte a um mundo normativo, pois eu nunca pertenci a este mundo, e com a atual visibilidade do autismo, espero ter a oportunidade de viver e conquistar junto com meus pares autistas uma adaptação deste modelo normativo para nos incluir e acolher.
Nossa luta por inclusão não revela o quanto podemos nos sentir debilitados ou incapacitados por forças muito difíceis de explicar. O autismo, por ser uma deficiência oculta, normalmente é associado a comportamentos sociais que podem ser alterados voluntariamente ou com intervenções comportamentais intervencionistas pontuais.
Eu gostaria que fosse tão simples quanto é solitário.
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