O autismo e a deficiência da confiança

Para a maioria das pessoas que estão no espectro, o autismo pode ser entendido como uma deficiência da confiança. Em razão dos seus problemas neurológicos, autistas enfrentam obstáculos imensos, que são de três tipos: confiar no próprio corpo, confiar no mundo ao redor e, talvez o mais difícil de todos, confiar nas pessoas.

“O contrário da ansiedade não é a calma, é a confiança.” – Michael John Carley

Essa ideia ajuda a explicar boa parte do que provoca ansiedade em todas as pessoas, não somente nos autistas, e mostra por que razão reagimos com medo e, muitas vezes, procuramos um modo de controlar nossa vida, nosso ambiente e nossos relacionamentos. Essas tendências são ainda mais pronunciadas nos autistas.

Confiança no corpo

Quando uma pessoa neurotípica acorda resfriada, isso normalmente é um inconveniente de pouca importância. Como é quase certo que já ficou resfriado antes, você dispõe da perspectiva e da experiência necessária para compreender que a tosse e a coriza devem durar apenas uns poucos dias e que logo você passará a se sentir melhor. No entanto, quando uma pessoa autista sente esses mesmos sintomas físicos, ela pode reagir com ansiedade e medo. O que está acontecendo comigo? Por que não consigo respirar normalmente? Será que isso vai durar para sempre?

Boa parte dos autistas sofrem de perturbações motrizes que envolvem movimentos involuntários em várias partes do corpo. Deslocamento da mandíbula, abertura involuntária dos braços, ou tiques diversos em momentos de desregulação podem levantar incertezas na pessoa autista; afinal, devo confiar no meu próprio corpo se ele involuntariamente tem determinadas ações? Deve-se ressaltar também que muitos autistas não falam justamente por conta dessas perturbações motrizes, sendo essencial o uso de meios de comunicação alternativa e aumentativa (CAA), não só para fins de comunicação, mas também para fins de criação de um vínculo de confiança com o próprio corpo.

Confiança no mundo

Mesmo que uma pessoa consiga confiar no próprio corpo, é difícil confiar no mundo ao redor. Muitas vezes a fonte de frustração de uma pessoa autista é um equipamento de uso pessoal que parou de funcionar, a perda de um objeto ou a pilha do controle de televisão que acabou inesperadamente. A reação da pessoa autista pode parecer desproporcional, desencadeando um acesso de nervosismo, por exemplo.

A desregulação pode acontecer até mesmo com o fim de uma série favorita, um sabor determinado de sorvete que deixou de ser produzido pela sorveteria, ou na mudança de rota que o motorista do ônibus ou aplicativo fez sem aviso prévio.

Mas assuma o ponto de vista do autista: seu senso de ordem – de como as coisas funcionam – foi violado. Ela se viu diante de um mundo em que não pode confiar. Tais eventos inesperados desencadeiam na pessoa autista uma reação extrema em razão de sua rigidez cognitiva.

Uma perturbação deste tipo que afetou a todos foi o começo da pandemia da Covid-19, uma demonstração cabal da ansiedade que pode nos acometer quando não conseguimos mais confiar no mundo e nas rotinas que estabelecemos para navegar pela vida cotidiana. Quando a saúde e a segurança se tornaram prioridades máximas, a maioria de nós sofreu uma inquietante perda de previsibilidade.

Confiança nas pessoas

O desafio mais significativo envolvendo a confiança, para os autistas, é confiar nas pessoas. A maioria das pessoas possuem um sistema neurológico capaz de prever o comportamento alheio – de ler intuitivamente a linguagem corporal e fazer juízos subconscientes com base no estado de relaxamento do corpo do outro, no modo com que uma pessoa olha para os outros ou no contexto social. É assim que se determina as intenções de uma pessoa, se ela está aberta para uma aproximação social ou afetiva, se é seguro ficar perto dela.

Isso, no entanto, costuma ser bem mais difícil para quem está no espectro.

Autistas costumam gastar muito mais energia e fazer um esforço acima do adequado tentando compreender a intenção e o comportamento das pessoas, sendo uma fonte de ansiedade inesgotável. O fato de não saber em quem confiar ou a falta de previsibilidade sobre o que uma pessoa poderá fazer acarreta viver em um estado constante de vigilância, não muito diferente de um soldado que trabalha no esquadrão antibomba. Se o sistema neurológico está sempre em alerta máximo, como prestar atenção em qualquer outra coisa? É esgotante. Torna-se difícil desempenhar as funções cotidianas. Toda energia é direcionada para a manutenção dos sistemas de defesa.

Alguns autistas enfrentam um desafio quase oposto. São indivíduos que podem se movimentar e reagir com mais lentidão que os outros. Parecem menos alertas e aparentemente não prestam atenção nas pessoas e nos acontecimentos ao redor. Permanecer num estado de baixa estimulação é como andar por aí desconcentrado e entorpecido. Estes são chamados de “autistas de baixo viés de estimulação” pelos profissionais de saúde. Pelo fato de manifestarem menos problemas de comportamento, aparentam ser mais regulados, e muitas vezes são considerados como exemplos por serem “bons meninos” ou “não problemáticos”, pois parecem bem-comportados. Mas será que isso significa que eles não sentem ansiedade? Não necessariamente. Quando se sentem desregulados, tendem a interiorizar sua ansiedade em vez de exteriorizar os seus sentimentos. As sensações de ansiedade se acumulam neles com o tempo, e seus sinais de ansiedade ou desregulação observáveis são raros ou muito sutis, o que torna as crises difíceis de prever.

Texto adaptado livremente do livro “Humano à sua maneira: um novo olhar sobre o autismo” pg. 91-98.

Inscreva-se no grupo de estudos e acolhimento para participar da discussão de textos como este.

Deixe um comentário