De acordo com o próprio DSM-5-TR, o transtorno do espectro autista é diagnosticado de três a quatro vezes mais frequentemente no sexo masculino do que no feminino e, em média, a idade em que a pessoa é diagnosticada é mais tardia para o sexo feminino. As questões diagnósticas relativas ao sexo e ao gênero não param por aí: o manual diagnóstico mais recente ainda aponta que nas amostras clínicas, pessoas do sexo feminino têm mais propensão a apresentar transtorno do desenvolvimento intelectual concomitante, assim como epilepsia, sugerindo que meninas sem prejuízos intelectuais ou atrasos na linguagem podem não ter o transtorno identificado, talvez devido à manifestação mais sutil das dificuldades sociais e de comunicação.
Em 1981, a psiquiatra inglesa Lorna Wing, responsável pela introdução do termo Síndrome de Asperger e uma das primeiras pessoas a conceitualizar o autismo como um espectro, levantou a hipótese de que a camuflagem social nas pessoas do sexo feminino sem outras deficiências poderia influenciar no diagnóstico desta população. Em comparação com pessoas do sexo masculino com TEA, as pessoas do sexo feminino podem ter uma melhor conversação recíproca e ser mais propensas a compartilhar interesses, a integrar os comportamentos verbais e não verbais e a modificar seus comportamentos dependendo da situação, apesar de terem dificuldades de compreensão social similares às do sexo masculino.
A tentativa de esconder ou mascarar os comportamentos autistas (p. ex., copiar as roupas, a voz e o jeito de mulheres socialmente bem-sucedidas) também pode dificultar o diagnóstico em alguns indivíduos do sexo feminino. O DSM-5-TR ainda complementa que os comportamentos repetitivos podem ser um pouco menos evidentes em indivíduos do sexo feminino em comparação aos indivíduos do sexo masculino, e os interesses especiais nesta população podem ter um “foco mais social (p. ex., um cantor ou uma atriz) ou ‘normativo’, ainda permanecendo incomuns em sua intensidade“.
As questões culturais relativas ao gênero também são fundamentais aqui – é esperado que pessoas designadas como mulheres ao nascer tenham comportamentos de organização (como organizar bonecas e trocar as roupas delas) e a indução social para que elas tenham interesses normativos fazem com que os comportamentos repetitivos e estereotipados sejam invisibilizados nesta população. Culturalmente, também são mais cobradas a obedecer regras sociais e não demonstrar comportamentos explosivos ou desafiadores.
O autismo ainda hoje é tratado como um transtorno predominantemente masculino, muito pela razão de que as técnicas de diagnósticos desconsideram as características tipicamente femininas do transtorno, levantando a hipótese de que o autismo se manifesta diferente no público feminino, dificultando o diagnóstico ainda na infância, consequentemente tornando o acesso aos cuidados terapêuticos precocemente e aos serviços de saúde mental voltados para o transtorno do espectro autista muito mais escassos.
Tipos de camuflagem social no autismo
A camuflagem social, costumeiramente conhecida como “masking” pela população autista é classificada em três tipos de acordo com o Questionário de camuflagem de traço autista (CAT-Q):
- Compensação – composta por estratégias usadas para compensar dificuldades sociais e de comunicação, como por exemplo copiar o comportamento e falas de outras pessoas, assim como criar um roteiro para uma interação social futura;
- Mascaramento – composta por estratégias para esconder características específicas, como estereotipias, expressões corporais e faciais e outros comportamentos considerados atípicos a fim de não demonstrar desregulação ou excitação;
- Assimilação – composta por estratégias usadas na tentativa de aprender comportamentos considerados adequados em determinadas situações sociais para passar a impressão de que a interação social está sendo efetivada de forma natural. A assimilação representa tentativas de se misturar a situações sociais em que o indivíduo se sente desconfortável, sem deixar com que os outros vejam esse desconforto. As estratégias dentro do fator assimilação incluem evitar situações sociais ou gerenciá-las com a ajuda de outras pessoas, juntamente com a percepção de não ser “você mesmo” durante as interações.
A camuflagem é uma estratégia de enfrentamento consciente ou inconsciente com objetivo de assimilar e aprender comportamentos considerados “típicos” para compensar e camuflar as próprias características e dificuldades relacionadas ao transtorno. Embora a população neurotípica também faça uso de estratégias de camuflagem social, autistas e outros neurodivergentes tendem a se sentirem esgotados ao se exporem as situações que demandam destas estratégias.
Situações corriqueiras de camuflagem social no espectro autista:
- Imitar as expressões faciais, tom de voz e comportamentos das pessoas que estão no mesmo ambiente, assim como rir em uma situação onde os outros estejam rindo de uma piada, mesmo que incompreendida;
- Forçar o contato visual durante interações sociais, ou fingir que está fazendo isso olhando para o espaço entre os olhos de alguém;
- Suprimir, reduzir ou ocultar estereotipias e dificuldades sensoriais com o anseio de que os outros percebam a desregulação ou excitação;
- Planejar com antecedência o que falar em situações sociais, seja ensaiando ou criando roteiros diversos com lista de tópicos para possíveis interações, à fim de criar previsibilidade;
- Ficar próximo de colegas que estão interagindo, mas não realmente se envolver com eles;
- Tentar se adaptar aos interesses e hobbies das pessoas ao redor.
A camuflagem social no autismo constantemente leva à hipervigilância e necessidade de adaptação constante às preferências e expectativas – sejam elas expressas, implícitas ou antecipadas – em relação às pessoas ao redor. O esforço para o mascaramento causa desgaste e é um fator estressor para as pessoas com o transtorno, sendo responsável por crises de ansiedade, sensação de baixa autoestima e até a percepção de perda de identidade pessoal. O mascaramento é usado, principalmente, para evitar consequências negativas, como julgamento ou discriminação, diante de uma situação social. Além disso, as técnicas de camuflagem social podem levar à dificuldade de acesso ao apoio adequado, como o próprio diagnóstico de autismo e, consequentemente, o atendimento médico especializado.
–
Referências:
DSM-5-TR: “Questões Diagnósticas Relativas ao Sexo e ao Gênero”, página 65
“Masking no autismo – o que é?” – Texto do blog Academia do Autismo
“Camuflagem social x diagnóstico do TEA no público feminino” – Texto do blog Autismo e Realidade
Artigo: “Desenvolvimento e validação do Questionário de Traços Autísticos Camuflados (CAT-Q)” (em inglês)

Deixe um comentário