Os desafios da comunicação e compreensão social no autismo

*texto adaptado do livro: Humano à sua maneira, capítulo 6

Quase todo autista tem algum grau de dificuldade para interagir socialmente. Alguns são tão indiferentes às convenções sociais que não tomam consciência de suas gafes e prestam pouca atenção no modo como os outros percebem as suas ações. Outros, tem outro tipo de dificuldade: sabem muito bem que as regras e as expectativas sociais existem, mas, como não as compreendem intuitivamente, muitas vezes, se sentem ansiosos e com baixa autoestima, pois se esforçam em vão para negociar um mundo de convenções sociais que desafia a sua compreensão. Para outros autistas que também tem forte consciência das expectativas sociais neurotípicas — como a de manter conversas triviais e educadas com estranhos — podem ter a impressão de que essas expectativas não fazem sentido.

O desafio de aprender as regras sociais

Para todos os grupos — os que permanecem em sua alegre inconsciência, os que se preocupam em excesso e os que veem as convenções sociais neurotípicas como algo que não tem sentido lógico —, a dificuldade decorre de um mesmo problema. Os seres humanos têm por natureza um aparato neurológico que lhes faculta a intuição social, mas as diferenças neurológicas que caracterizam o autismo impõem dificuldades ao desenvolvimento dessa intuição.

Pensemos no modo orgânico como aprendemos a falar. A mãe não se senta com a criança no colo para explicar as diversas categorias de palavras e a conjugação dos verbos. Aprendemos porque somos expostos à linguagem e vivemos mergulhados nela. No jargão das pesquisas sobre o desenvolvimento da linguagem, nós induzimos as regras da língua e, em decorrência disso, aprendemos o que as palavras significam e aprendemos a usá-las em frases e na conversação para expressar ideias complexas.

O mesmo vale para as regras sociais neurotípicas. Em geral, as pessoas induzem as convenções da interação social, que são, muitas vezes, sutis e invisíveis. Aprendem por um processo de imersão e osmose, monitorando a paisagem social e recebendo conselhos quando necessário. A deficiência dos autistas, no entanto, faz com que lhes seja muito difícil esquadrinhar a paisagem social e inferir essas regras. Eles podem aprendê-las, mas é algo semelhante ao processo de aprender um segundo idioma depois de adulto, quando já é muito mais difícil alcançar a mesma fluência e estabilidade que os falantes nativos. Aquilo que para os outros é natural e espontâneo, sempre exigirá algum grau de esforço consciente, e a memória desta dificuldade será constante. O interessante é que muitos autistas que convivem socialmente com outros autistas dizem que se sentem muito mais à vontade nessas situações, em virtude das expectativas comuns. É como se entrassem em sua própria cultura, com as próprias regras de comunicação e socialização.

Imagine-se entrando pela primeira vez em num restaurante self-service. Há diferentes tipos: em alguns, o consumidor paga primeiro, depois pega uma bandeja e escolhe o que vai comer; em outros, ele primeiro escolhe o que vai comer, põe tudo no prato e só depois paga. Onde pegar os talheres, temperos e bebidas varia de restaurante para restaurante. Quando você entra num restaurante pela primeira vez, como você aprende as regras e as expectativas sociais? Você vê o que as pessoas estão fazendo. Uma pessoa no espectro autista, contudo, pode não observar essas regras instintivamente. Talvez se dirija diretamente ao alimento que quer pegar — talvez furasse a fila, pois, afinal, o que você quer é simplesmente pegar a comida. Sendo autista, você talvez tenha consciência de que as regras sociais devem ser seguidas, mas, por não saber quais são, talvez se sinta desorientado e perdido ou fique por um tempo perplexo olhando em volta em busca de pistas.

Muitos autistas sentem o mundo desta maneira, como um restaurante desconhecido, com regras que os outros clientes aparentemente já conhecem, mas que parecem quase impossíveis de aprender, sobretudo em ambientes mais movimentos e ruidosos.

É claro que autistas são capazes de aprender as regras, com o apoio adequado. Continuando com a analogia do restaurante: ao chegar em um bufê de saladas, você é imediatamente encaminhado para a sessão de saladas e, ao preparar o prato, iria direto para o caixa pagar. À partir daí, você entra em uma nova área onde há sopa, sanduíches e sobremesas, tudo incluído no preço fixo. Como um recém-chegado poderia compreender essa sequência? Na parede do restaurante foram dispostos diagramas visuais indicando o processo para novatos: entre na fila de saladas, pague, depois pegue sopa e sobremesa à vontade. Chamamos essas informações de apoio de função executiva, pois ajudam a pessoa a permanecer concentrada e seguir etapas necessárias para alcançar um objetivo final.

A importância de ser claro e direto

A língua pode ser um obstáculo para a compreensão social, pois autistas tendem a interpretar a linguagem num sentido literal. Entretanto, coloquialmente nem sempre é falado aquilo que realmente se quer dizer. É por isso que, o uso de metáforas, o sarcasmo e outros usos não literais da linguagem podem causar confusão na mente de muitos autistas.

Pedidos diretos funcionam melhor que insinuações sutis para autistas. Falar “aquele biscoito parece estar uma delícia!” pode ser claro para uma pessoa não autista de que há o desejo de comer o biscoito e que você gostaria que lhe fosse oferecido um, mas, ao falar com um autista, a comunicação direta como “me dê um biscoito, por favor” funciona muito melhor.

Para alguns autistas, pode ser necessário explicar o próprio conceito de linguagem não literal e ensinar os sentidos específicos de palavras e expressões idiomáticas que não sejam claras ou evidentes. Os sentidos implícitos de “descascar um abacaxi” ou “suar a camisa” podem ser objetos de confusão, entretanto o significado dessas expressões pode ser ensinado diretamente, como se fossem palavras ditas em outra língua. Muitos autistas elaboram listas de palavras e expressões que os deixam confusos e estudam essas listas com pais, terapeutas, professores ou colegas para compreender melhor o que foi dito. É importante lembrar que o problema tem diversas gradações que variam conforme a ideia da pessoa, sua capacidade linguística e suas experiências sociais. A melhor forma de lidar com essas dificuldades é fazer com que todas as partes assumam alguma responsabilidade: neurotípicos devem adaptar sua linguagem para que fique menos confusa; e os autistas devem aprender o verdadeiro significado de expressões comuns que não devem ser entendidas literalmente.

O estresse da incompreensão

É possível que autistas tenham dificuldades de compreender comportamentos sociais e interpretar determinadas situações. Há um constante esforço para se adequar ao normativo e a repetição dessa experiência cobra o seu preço. O fato de saber que eu deveria compreender isso, mas, por mais que tente, não consigo causa frustração, infelicidade e ansiedade. A reação de muitos autistas consiste em permanecer inibidos nos encontros sociais ou simplesmente evitá-los totalmente. Alguns se voltam pra dentro e caem na depressão.

Cientes de sua dificuldade, muitos autistas se desculpam de modo quase habitual, mesmo sem compreender pelo que estão se desculpando. Pode acontecer de entenderem as regras sociais em extremos de oito ou oitenta. Pode acontecer de um companheiro insensível ter-lhes dito ao longo dos anos que eles são mal-educados e não conseguem se relacionar bem, tendo sido instruídos a dizer infinitamente “me desculpe”. Esforçam-se ao máximo, mas, quando suspeitam de que não disseram ou fizeram a coisa certa, seu instinto é pedir desculpas imediatamente. Por mais que lhes seja dito que está tudo bem, eles se acostumam com a ideia de que cometeram erros, então se desculpam automaticamente.

A confusão constante em situações sociais, mesmo das mais comuns e cotidianas, pode fazer com que, diante de situações realmente imprevisíveis ou desconhecidas, a pessoa reaja de maneira inesperada ou radical. Aos olhos do observador, o comportamento pode parecer brusco, repentino ou inexplicável, mas muitas vezes decorre da frustração e da ansiedade que vinham se acumulando na pessoa há algum tempo.

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